E eu começo a chorar de novo.
Chorar tinha virado rotina, ultimamente. Não que eu gostasse. Mas o que poderia fazer? Eu ia para o inferno.
Exatamente, o Inferno. E bom, sou um anjo. No feminino, mas não sei se anjo tem feminino.
Ou pelo menos era. Porque eu meio que caí. Tá, eu totalmente caí do Paraíso.
E vem a pergunta que não quer calar: Por quê? Ah, sim. Porque eu me apaixonei.
Totalmente me apaixonei por um mortal. E anjos não podem se envolver com mortais. Além de ter aquele probleminha de nephilins malucos por aí, que são o fruto de anjos com humanos, Zeus nos proibiu de nos envolvermos com mortais. Como se ele mesmo conseguisse ficar longe deles, criando seus semideuses.
Quem quer contrariar um deus, certo? Eu que não me arriscaria. Viram Prometeu? Não teve muita sorte quando o prenderam por levar fogo aos mortais. Poxa, qual é o problema? O mundo precisa evoluir, e bem que evoluiu.
Então, aqui estou eu. E meu humano, Chace Hollows, ainda não sabe. Contei a ele sobre os anjos e que sou um. Pode crer, ele surtou total. Mas pelo menos me aceitou assim mesmo. Não se pode esconder tudo dos deuses, claro. Fiz o possível, mas uma hora eles descobriram. Foram tão caridosos que todos me negaram a compreensão. Afrodite ainda tentou protestar. Só a deusa do amor mesmo para entender. Mas, calou-se quando Zeus ameaçou jogá-la no Tártaro.
Enxugo as lágrimas que caem de meus olhos, lavando meu rosto, encolho minhas asas totalmente negras e meio chamuscadas para dentro da minha pele. Aquilo queima mais do que quando era anjo, mas suporto a dor. Coloco meus cabelos, agora totalmente negros, atrás das orelhas (sim, eu era loira, tão loira que chegava a aparentar o branco), mas com a queda, meus pigmentos parecem ter voltados à tona para meus cabelos. E meus olhos, também antes azuis, agora não devem ser diferentes do meu cabelo. Meu tom de pele ainda continua pálido, e ainda possuo os cabelos lisos e grossos até minha cintura. Como uma cortina de veludo.
Levanto-me do chão onde ficara fazia algumas horas, chorando e chorando. Só espero que Chace não me rejeite também.
Começo a caminhar quando noto onde finalmente me encontrava no Maine. E, que frio! Eu somente uso uma blusa fina, antes branca, mas agora negra, e calças da mesma cor. Meus pés descalços começam a formigar pelo frio e me abraço para tentar me proteger do vento gelado.
Sigo em direção à casa de Chace.
Após duas batidas, a porta se abre, junto com um calor aconchegante. Estou tremendo, meus lábios devem estar roxos e meus pés não sentem mais nada. Chace me olha por inteiro, como se não acreditasse que eu estivesse vestida daquele jeito enquanto lá fora faziam uns 2 graus.
Ele me puxa para dentro e pergunta, indo pegar um cobertor para mim:
– O que você pensa que está fazendo vestida assim, Eve? – a preocupação fica estampada em seu rosto, seus olhos verdes me olham perplexos. Seu cabelo castanho cobre sua testa charmosamente e suas feições mortais e bonitas me acalmam.
Menos um para as lágrimas.
– Eu... Eu... – gaguejo demais, o que o faz ficar mais ainda preocupado, enquanto me abraça em seu colo com o cobertor.
Encosto-me no seu peito rígido e fico em silêncio, sabendo que ele ainda espera que eu dê uma resposta para meu estado.
Após alguns minutos, eu digo, o calor voltando ao meu corpo:
– Eu caí – ele franze a testa, como se não tivesse entendido o que eu tinha dito.
– Caiu do quê? Anjos caem?
Rio, meio sem humor, e explico:
– Não sou um anjo mais, Chace. Eu caí do céu, do Olimpo, do mundo de Zeus.
Chace então me olha assustado.
– Você não é mais um anjo então? Eve, o que você é? E caramba, o que você fez com o cabelo? E porque seus olhos escureceram tanto assim? – ele só foi perceber esses detalhes agora, e eu sorrio para ele, sem vontade alguma de fazer isso.
– Virei uma caída. Um anjo das trevas. Um demônio. Uma alma perdida.
– Você não pode ser isso. Tem bondade demais no seu coração. – Chace me diz, como se o que eu dissera fosse absurdo.
Às vezes até eu mesma achava absurdo.
– Eu sei. Mas Zeus me condenou por descumprir suas regras.
Quando Chace ia protestar mais uma vez, a porta se escancara e uma mulher irradiando luz entra.
Com um sinal de mão, a porta se fecha atrás dela. Chace me segura mais forte, e quando a luz se esvai, a deusa do amor aparece na nossa frente.
– Evelah, levante-se filha.
Sim, sou a filha de Afrodite. Se é coincidência eu amar, não sei.
Meu pai? Um anjo, claro. Qual? Não tenho ideia.
Levanto-me do colo de Chace, com o cobertor nas costas. Ainda estava com frio.
Faço uma reverência para minha mãe e ela me puxa para seus braços num abraço aconchegante e maternal. Esforço-me para não chorar e implorar perdão para Zeus para que possa voltar ao Paraíso. Mas não. Não faria isso. Por meu orgulho, que agora era mais forte –efeitos de ser uma caída –e por Chace. Não ia abandonar Chace nem por minha chance de voltar a ser como era, nunca.
Eu o amo demais.
– Ah, minha criança. O que você se tornou?
Minha mãe me solta e se dirige finalmente para Chace.
– Venha até aqui, mortal.
Chace, respeitosamente vem até minha mãe. Ela pega a sua mão e diz:
– As Fúrias virão buscar Evelah
O quê? Quase grito, mas me contenho. Dessa parte eu não sabia.
Com um aceno mágico, Afrodite, minha mãe, faz aparecer um cálice em sua mão.
Ela vem em minha direção, estende meu braço, e com sua unha, corta meu pulso.
Chace vem ao nosso lado, preocupado, mas digo:
– Está tudo bem.
Então, quando enche o cálice, ela passa os dedos pelo meu corte que transborda sangue. Ele cicatriza e deixa uma fina linha no lugar.
Oferecendo o cálice a ele, minha mãe diz:
– Beba, mortal.
Chace aceita o cálice de ouro sem pestanejar, e ia levá-lo a boca, quando eu digo:
– Espere!
Minha mãe me olha confusa e diz:
– Evelah, por quê?
Com os olhos cheios de lágrimas, respondo:
– Não quero que ele se torne um caído como eu, mamãe. Ele é humano. Eu quero que continue humano, é o direito dele.
– Eve, mas eu quero. Quero proteger você. Quero ser o mesmo que você.
Olho para ele, e seus olhos brilham para mim quando ele sorri.
– E eu sempre quis ser imortal.
Com uma piscadela, ele toma todo o líquido escarlate do recipiente. Meu sangue.
Minha mãe segura o cálice e o faz desaparecer quando o mesmo quase cai dos dedos de Chace, e ele vai ao chão.
Sem perceber, estendo minhas asas de nervosismo e vou ao seu lado.
Chace segura o estômago e tem os lábios manchados de sangue. O meu sangue.
Minha mãe me impede de ir até ele e diz:
– Está se transformando. Deixe-o.
Faço o que ela pede, e quando se torna agonizante demais para assistir, viro-me para ela e pergunto:
– Zeus quer me condenar ao Tártaro?
Seus olhos azuis, antigamente iguais aos meus, me olham com preocupação e ela assente.
– Tive que vir aqui sem que ninguém percebesse. Não tenho muito tempo, minha menina. Precisava avisá-la.
Ela me abraça novamente.
Eu sou a única filha metade anjo e metade deusa de Afrodite, e acho que sou bem importante para ela.
Dando um beijo na minha testa, minha mãe diz:
– Amo você, Evelah. Sempre. – ela então, tira algo das vestes brancas e douradas que veste.
Uma adaga com cabo de aço reluz.
– Esta é para você. Com seus treinamentos, saberá o que fazer e a usará sabiamente, somente para se defender.
Pego o cabo da adaga, parecendo gelado demais.
Chace para de se contorcer e só agora noto que ele levantara. Meu coração se palpita e minhas asas se agitam. Chace tem, agora, os cabelos mais escuros ainda, e seus olhos se tornaram da mesma cor.
Sua pele pálida igual a minha brilha no crepitar da lareira e ele sorri para mim.
Suas asas negras atrás dele se agitam, felizes.
Não deixo de sorrir também e vou correndo abraça-lo.
– Agora podemos ficar juntos. Para sempre – ele sussurra no meu ouvido.
– Eu sei, meu amor. Eu sei – respondo, feliz.
– Mortal... Desculpe. Caído. Aproxime-se.
A voz de minha mãe faz-nos sairmos do abraço um do outro, e Chace vai para frente, ficando cara a cara com minha mãe.
Novamente tirando algo de suas vestes, Afrodite tira uma espada de lâmina fina, capaz de fazer golpes rápidos e mortais. Seu cabo de couro é maior que a lâmina, e caramba, ela é linda!
– Evelah ensinará como usá-la. – minha mãe diz, fria.
Então, com suavidade nos olhos, diz:
– Boa sorte, Caído. Viverão no mundo dos humanos somente se parecerem-se com um. E cuidado. Os perigos estão a toda parte. Zeus é impiedoso, e fará de tudo para que Evelah seja punida. Cuide dela e de você mesmo.
Afrodite, então, dá um olhar na minha direção e diz:
– Vejo-a em breve, minha menina.
Então, num clarão, ela some.
Chace me olha sorridente e diz, com seus 23 anos imortais:
– Quando começaremos?
Sorrio para ele e passo as mãos pelos desenhos no cabo de minha adaga. Respondo:
– Em breve, meu amor. Em breve.
Luana Dutra